- Capítulo Um -
O ENTERRO
Era um casarão solitário. Acima
de tudo tinha um primeiro andar. Mas sempre estava fechado. O frio das manhãs
não penetrava porque o casarão estava voltado para o norte. A brisa suave e
repentina vinha apenas do leste. As tardes de sol tinham maior valor para o
casario, pois devagar o aquecimento penetrava do recinto. Apesar de tudo, o
casarão assobradado estava sempre cerrado em suas suntuosas portas e janelas. Porém,
naquela tarde calorenta estavam abertas todas as grandiosas portas da frente
com seus janelões acortinados de um vermelho escuro como o luto a se arrastar a todos os participantes
das últimas e reais homenagens a serem feitas. No meio do escuro salão, a urna fúnebre. Pouca
gente então. De importância, apenas um médico.
A família do doutor Walter Nardelli Taffner, 90 anos de idade, estava
ausente. A sua esposa já era falecida. O seu nome, Nicette foi esse quando viva
e bem saudável para se ostentar. Nas elegantes paredes do solar apenas as
estantes e antigos retratos provavelmente dos parentes ilustres e pinturas em
anosos quadros. Bandejas de licores eram tudo o que se podia notar naquele
discreto e infausto velório. A cor
acinzentada do solar não era por carência de pintura para ser visível. Era
apenas pelo desgaste do tempo soturno e melancólico. Nesse provável casarão sem
mais historias estava a residir o seu senhor. Os episódios da casa eram cuidados
por uma governanta e uma criada. Um jardineiro vigiava o pomar ao redor da
mansão. Para os fins do terreno eram apenas gigantescas árvores sombrias e
emudecidas.
O doutor Nardelli chegou ao
Brasil vindo da Itália tão logo concluiu os seus estudos da Cadeira de
Medicina. Era ele proveniente de uma família numerosa do norte do país. Tal
família era de um luxo e riqueza pela nobreza e prestigio italianos. Em tempos remotos, a música erudita era o
aconchego da Casa dos Nardelli. Albinoni, Bellini, Vivaldi ou mesmo Verdi. Eram
autores prediletos da augusta Casa. Nesse ambiente Nardelli nasceu e cresceu ao
final do século XIX entre suntuosos casarões italianos no meio de livros e
molduras de retratos em um ambiente de árvores seculares. Senhoras da nobreza
em vestes matriarcais eram os mais visíveis para a distinta criança
Nardelli. Arranjos de prata e cristais
famosos era tudo o que podia distinguir
no antigo e vetusto solar. Crianças a
brincar no pomar. Visitas em dias marcados. E presença da menina Nicette, filha
de tradição dos Sandrinis. Era ela a escolhida para o casamento com Walter
Nardelli. Gente rica e tradicional da velha Itália.
Os mais antigos da família
buscavam na aristocracia a vida fraternal como sendo heróis de antigas
tradições medievais ou mais para os
tempos da República Romana onde o Senado era constituído por um círculo
restrito de membros dos chamados “nobiles”.
Assim eram as famílias consulares de origem patriarcais a tender a magistratura
adquirida como um privilégio, pois o acesso ao Senado era reservado somente a
alguns. O casarão da colina italiana
mostrava muito bem o enigmático brasão histórico da tradicional linhagem
Nardelli. E aquele brasão fora composto em seus mínimos detalhes pelo doutor
Nardelli ao por em sua nobre mansão ao se transferir para o Brasil. Quem
avistasse o brasão veria alí a habitação de um nobre senhor.
Um ano antes de 1930, o doutor
Nardelli embarcou no transatlântico com a sua esposa já estando no segundo mês
de sua gestação. O casal viajava na primeira classe no navio Massília e
desembarcou no porto do Rio de Janeiro junto aos demais passageiros de igual
categoria. A viagem foi um tanto turbulenta para a senhora Nicette Sandrini
Nardelli por conta dos enjoos e náuseas. Notadamente, por vários dias a senhora
Sandrini teve de ficar de resguardo em sua suíte acompanhada da sua governanta.
Essa mulher era, aparentemente, de uma classe social de menor poder aquisitivo,
porém mostrava-se austera. Ela, a governanta, apenas obedecia às ordens dos
seus senhorios e nada mais. De cor rosada, olhar intenso e profundamente calada
perante todos os viajantes, dona Gilda Baldo se tornara apenas sisuda. Na noite
de brumas ou fortes chuvas, Gilda estava pronta para agasalhar com uma coberta
a sua patroa. Ela era ainda jovem, de seus 25 anos como à senhora Nicette, de
um pouco mais de idade. Nascida em locais ermos da Itália, estava à moça apenas
compenetrada no seu serviço. Outro evento pouco importava.
Se fosse manhã de sol, o banho de
piscina. Se fosse à tarde, olhar o céu. À noite, ficava-se no salão de jogos ou
a conversar com os passageiros da primeira classe. Mulheres distintas de joias e brilhantes. Seis
dias de viagem. O esposo a conversar com o capitão do navio onde aparecia
igualmente um general aposentado a falar dos feitos heroicos da Primeira
Guerra. Noites vazias de frio intenso. De qualquer modo, era uma travessia
tranquila. Itália-Brasil com paradas na Inglaterra, Portugal e Açores. Um
magnata expunha planos de comprar café do Brasil para exportação. Por sua parte
o Capitão falava em se aposentar ao fim desse percurso.
Capitão:
--- Essa será minha última viagem
como capitão de navio. Espero terminar a contento! – relatava o homem gordo e
barbudo.
O navio Massília estaria
quebrando o seu recorde na travessia do Atlântico. Para o Capitão era um
orgulho. O navio prosseguia sem a nebulosidade naquela hora ainda cedo da
noite. Uma embarcação cargueira passou ao longe e deu seus parabéns em sinal de
Morse. O Imediato respondeu com bons ventos. Na praça de máquinas de quatro
andares os foguistas e engenheiros se encarregavam com o manuseio do gigante
dos mares. O barulho era tremendo no interior profundo da embarcação a não se
ouvir o que alguém falava. Os foguistas sacudiam volumes tremendos de carvão no
interior dos motores parecendo almas angustiadas a serem levadas para o inferno
onde os seres agoniados suplicavam pela salvação abismal. A tormenta era incrível
por onde se ouvia as agonias e prantos. Homens enegrecidos pelo fumo saído das
caldeiras pareciam espantalhos a vestir uma miserável e vergonhosa tanga. Esse
era o destino cruel da embarcação.
E em uma amanhã ensolarada do mês
de abril o navio tocou o cais do Rio de Janeiro para a glória do seu comandante ao se despedir de todos os
passageiros de primeira classe onde teceu magnífica amizade com todos eles. A
buzina do navio ecoou sublime por todo aquele instante enquanto os passageiros
desembarcavam com malas e cuias. Entre eles, estavam o doutor Nardelli e a sua
deslumbrante esposa Nicette tendo a
companhia da governanta, senhorita Gilda Baldo. A manhã de sol ofuscava a visão
de todos os passageiros. E o gentio a levar as malas dos mais ricos deixava
atônita a senhora Nicette sem saber ao certo para onde ele fugiu
intempestivamente. Mesmo assim, nada Nicette falou a respeito. Aquela era a sua
primeira viagem para fora de sua terra, à Itália. A governanta Gilda parecia
não entender ao contento do que estava a se passar. O interessante era o título
dado a Gilda Baldo – Governanta – pois a bela moça não entendia muito bem do
caso de ser ou não ser tanto assim.
Na sala de documentação do Porto,
o médico Nardelli se despediu do capitão
do navio, de um oficial e demais
viajantes e tentou encontrar um seu velho amigo já a morar no Rio de Janeiro,
local ainda totalmente desconhecido para os viajantes de primeira visita. O
doutor Enzo Capraro, distinto oftalmologista já a estar há alguns anos a
residir na Capital da República. Após longo trajeto, o doutor Nardelli logo
avistou a figura gorda e sorridente de Capraro. Foi uma alegria geral dos dois
amigos. Capraro nem precisou ser apresentado à dona Nicette, pois já conhecia
desde o tempo em que a senhora era uma menina a viver as travessuras na
residência dos Nardelli.
Capraro:
--- Orgulho-me de poder olhar à
senhora. Uma menina travessa há anos. O tempo passa, Agora é uma senhora. –
sorriu bastante.
Nicette:
--- Obrigada. Obrigada. – sorriu
a mulher.
Capraro:
--- E como foi à viagem para
todos vós? – indagou se dirigindo ao médico.
Nardelli:
--- Ótima. Ótima. Apenas uma
chuva passageira. A senhora Nicette teve náuseas por conta da viagem. Mas, tudo
passou em perfeita ordem. – declarou a sorrir.
Capraro:
--- Eu imagino. Conversas e mais
conversas. E o pessoal? – indagou.
Nardelli:
--- Tinha de tudo. De judeus a
nazistas. – sorriu o moço.
Capraro:
--- Imagino muito bem. Os
nazistas ainda estão por baixo. Fala-se muito no “bigodinho”. Hitler. Mas,
apenas se ouve falar. – declarou sem importância.
Nardelli:
--- A Itália é um pandemônio. O
povo só pensa em Benito. Fala-se pra lá. Fala-se pra cá. Eu sei que os
adversários estão em desvantagem. O povo quer o fascismo como Governo dos
países europeus. – reclamou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário