segunda-feira, 24 de março de 2014

A IDADE DA RAZÃO - UM

- Capítulo Um -
O ENTERRO
Era um casarão solitário. Acima de tudo tinha um primeiro andar. Mas sempre estava fechado. O frio das manhãs não penetrava porque o casarão estava voltado para o norte. A brisa suave e repentina vinha apenas do leste. As tardes de sol tinham maior valor para o casario, pois devagar o aquecimento penetrava do recinto. Apesar de tudo, o casarão assobradado estava sempre cerrado em suas suntuosas portas e janelas. Porém, naquela tarde calorenta estavam abertas todas as grandiosas portas da frente com seus janelões acortinados de um vermelho escuro como  o luto a se arrastar a todos os participantes das últimas e reais homenagens a serem feitas.  No meio do escuro salão, a urna fúnebre. Pouca gente então. De importância, apenas um médico.  A família do doutor Walter Nardelli Taffner, 90 anos de idade, estava ausente. A sua esposa já era falecida. O seu nome, Nicette foi esse quando viva e bem saudável para se ostentar. Nas elegantes paredes do solar apenas as estantes e antigos retratos provavelmente dos parentes ilustres e pinturas em anosos quadros. Bandejas de licores eram tudo o que se podia notar naquele discreto e infausto velório.  A cor acinzentada do solar não era por carência de pintura para ser visível. Era apenas pelo desgaste do tempo soturno e melancólico. Nesse provável casarão sem mais historias estava a residir o seu senhor. Os episódios da casa eram cuidados por uma governanta e uma criada. Um jardineiro vigiava o pomar ao redor da mansão. Para os fins do terreno eram apenas gigantescas árvores sombrias e emudecidas.
O doutor Nardelli chegou ao Brasil vindo da Itália tão logo concluiu os seus estudos da Cadeira de Medicina. Era ele proveniente de uma família numerosa do norte do país. Tal família era de um luxo e riqueza pela nobreza e prestigio italianos.  Em tempos remotos, a música erudita era o aconchego da Casa dos Nardelli. Albinoni, Bellini, Vivaldi ou mesmo Verdi. Eram autores prediletos da augusta Casa. Nesse ambiente Nardelli nasceu e cresceu ao final do século XIX entre suntuosos casarões italianos no meio de livros e molduras de retratos em um ambiente de árvores seculares. Senhoras da nobreza em vestes matriarcais eram os mais visíveis para a distinta criança Nardelli.  Arranjos de prata e cristais famosos era tudo o que podia  distinguir no antigo e vetusto solar.  Crianças a brincar no pomar. Visitas em dias marcados. E presença da menina Nicette, filha de tradição dos Sandrinis. Era ela a escolhida para o casamento com Walter Nardelli. Gente rica e tradicional da velha Itália.
Os mais antigos da família buscavam na aristocracia a vida fraternal como sendo heróis de antigas tradições  medievais ou mais para os tempos da República Romana onde o Senado era constituído por um círculo restrito de membros dos chamados “nobiles”. Assim eram as famílias consulares de origem patriarcais a tender a magistratura adquirida como um privilégio, pois o acesso ao Senado era reservado somente a alguns.  O casarão da colina italiana mostrava muito bem o enigmático brasão histórico da tradicional linhagem Nardelli. E aquele brasão fora composto em seus mínimos detalhes pelo doutor Nardelli ao por em sua nobre mansão ao se transferir para o Brasil. Quem avistasse o brasão veria alí a habitação de um nobre senhor.
Um ano antes de 1930, o doutor Nardelli embarcou no transatlântico com a sua esposa já estando no segundo mês de sua gestação. O casal viajava na primeira classe no navio Massília e desembarcou no porto do Rio de Janeiro junto aos demais passageiros de igual categoria. A viagem foi um tanto turbulenta para a senhora Nicette Sandrini Nardelli por conta dos enjoos e náuseas. Notadamente, por vários dias a senhora Sandrini teve de ficar de resguardo em sua suíte acompanhada da sua governanta. Essa mulher era, aparentemente, de uma classe social de menor poder aquisitivo, porém mostrava-se austera. Ela, a governanta, apenas obedecia às ordens dos seus senhorios e nada mais. De cor rosada, olhar intenso e profundamente calada perante todos os viajantes, dona Gilda Baldo se tornara apenas sisuda. Na noite de brumas ou fortes chuvas, Gilda estava pronta para agasalhar com uma coberta a sua patroa. Ela era ainda jovem, de seus 25 anos como à senhora Nicette, de um pouco mais de idade. Nascida em locais ermos da Itália, estava à moça apenas compenetrada no seu serviço. Outro evento pouco importava.
Se fosse manhã de sol, o banho de piscina. Se fosse à tarde, olhar o céu. À noite, ficava-se no salão de jogos ou a conversar com os passageiros da primeira classe.  Mulheres distintas de joias e brilhantes. Seis dias de viagem. O esposo a conversar com o capitão do navio onde aparecia igualmente um general aposentado a falar dos feitos heroicos da Primeira Guerra. Noites vazias de frio intenso. De qualquer modo, era uma travessia tranquila. Itália-Brasil com paradas na Inglaterra, Portugal e Açores. Um magnata expunha planos de comprar café do Brasil para exportação. Por sua parte o Capitão falava em se aposentar ao fim desse percurso.
Capitão:
--- Essa será minha última viagem como capitão de navio. Espero terminar a contento! – relatava o homem gordo e barbudo.
O navio Massília estaria quebrando o seu recorde na travessia do Atlântico. Para o Capitão era um orgulho. O navio prosseguia sem a nebulosidade naquela hora ainda cedo da noite. Uma embarcação cargueira passou ao longe e deu seus parabéns em sinal de Morse. O Imediato respondeu com bons ventos. Na praça de máquinas de quatro andares os foguistas e engenheiros se encarregavam com o manuseio do gigante dos mares. O barulho era tremendo no interior profundo da embarcação a não se ouvir o que alguém falava. Os foguistas sacudiam volumes tremendos de carvão no interior dos motores parecendo almas angustiadas a serem levadas para o inferno onde os seres agoniados suplicavam pela salvação abismal. A tormenta era incrível por onde se ouvia as agonias e prantos. Homens enegrecidos pelo fumo saído das caldeiras pareciam espantalhos a vestir uma miserável e vergonhosa tanga. Esse era o destino cruel da embarcação.
E em uma amanhã ensolarada do mês de abril o navio tocou o cais do Rio de Janeiro para a glória  do seu comandante ao se despedir de todos os passageiros de primeira classe onde teceu magnífica amizade com todos eles. A buzina do navio ecoou sublime por todo aquele instante enquanto os passageiros desembarcavam com malas e cuias. Entre eles, estavam o doutor Nardelli e a sua deslumbrante esposa Nicette  tendo a companhia da governanta, senhorita Gilda Baldo. A manhã de sol ofuscava a visão de todos os passageiros. E o gentio a levar as malas dos mais ricos deixava atônita a senhora Nicette sem saber ao certo para onde ele fugiu intempestivamente. Mesmo assim, nada Nicette falou a respeito. Aquela era a sua primeira viagem para fora de sua terra, à Itália. A governanta Gilda parecia não entender ao contento do que estava a se passar. O interessante era o título dado a Gilda Baldo – Governanta – pois a bela moça não entendia muito bem do caso de ser ou não ser tanto assim.
Na sala de documentação do Porto, o médico  Nardelli se despediu do capitão do navio, de  um oficial e demais viajantes e tentou encontrar um seu velho amigo já a morar no Rio de Janeiro, local ainda totalmente desconhecido para os viajantes de primeira visita. O doutor Enzo Capraro, distinto oftalmologista já a estar há alguns anos a residir na Capital da República. Após longo trajeto, o doutor Nardelli logo avistou a figura gorda e sorridente de Capraro. Foi uma alegria geral dos dois amigos. Capraro nem precisou ser apresentado à dona Nicette, pois já conhecia desde o tempo em que a senhora era uma menina a viver as travessuras na residência dos Nardelli.
Capraro:
--- Orgulho-me de poder olhar à senhora. Uma menina travessa há anos. O tempo passa, Agora é uma senhora. – sorriu bastante.
Nicette:
--- Obrigada. Obrigada. – sorriu a mulher.
Capraro:
--- E como foi à viagem para todos vós? – indagou se dirigindo ao médico.
Nardelli:
--- Ótima. Ótima. Apenas uma chuva passageira. A senhora Nicette teve náuseas por conta da viagem. Mas, tudo passou em perfeita ordem. – declarou a sorrir.
Capraro:
--- Eu imagino. Conversas e mais conversas. E o pessoal? – indagou.
Nardelli:
--- Tinha de tudo. De judeus a nazistas. – sorriu o moço.
Capraro:
--- Imagino muito bem. Os nazistas ainda estão por baixo. Fala-se muito no “bigodinho”. Hitler. Mas, apenas se ouve falar. – declarou sem importância.
Nardelli:
--- A Itália é um pandemônio. O povo só pensa em Benito. Fala-se pra lá. Fala-se pra cá. Eu sei que os adversários estão em desvantagem. O povo quer o fascismo como Governo dos países europeus. – reclamou.
 

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