quinta-feira, 11 de outubro de 2018

SEGREDOS DE RACILVA - - 20 - -



O CORPO
Eram mais de 7 e meia horas da noite e chegava na casa de Racilva a doce moça Kátia, mulher linda e contente, como quer. Braços estendidos para o alto, abertos em forma de ípsilon (Y), em uma das mãos, um livro. Era toda sorrisos. Extasiante até demais. Sua face era de galhofas amplas para que todos a vissem com seu livro novo/velho à mão. Ela não precisava nem falar. Queria que todos a observassem de contente que estava. Trajes simples, no peito, uma rosa. O restante do vestido era branco lilás amarrado na cintura com uma fita de cor vermelho. Doce alegria. Por fim, Kátia mostrou o seu delicado presente: O Homem que Ri, de Victor Hugo. Era um livro já bastante velho, do século 18, contando a história de um homem bastante falador, oferecendo ervas medicinais em sua carroça, fazendo seu teatro de uma pobre vida errante. Na verdade, o livro tece uma crítica social à nobreza da Inglaterra ou do mundo.
Kátia
--- Olha! Já viu? Victor Hugo. O Homem que Ri. Maravilhoso! - - disse a moça a sorrir e entregando o livro a Racilva.
Racilva
--- Que maravilha! Eu nunca li esse! Veja, meu pai! - - e passou o livro para o velho Muniz.
Muniz
--- Eu o tenho. Da vasta produção literária do francês Victor Hugo, são muitas as obras que perduraram para sempre como clássicos mundiais, como é o caso deste O Homem que Ri, romance de 1869, há muito aguardado por leitores brasileiros. Nome luminoso do romantismo francês, Victor Hugo evidencia na obra os paradoxos que conferem a seus personagens sua mais verossímil humanidade: a violência e a ternura, o horror e o sublime, a humilhação e a dignidade, em meio ao tradicional cenário social que opõe a aristocracia opressora e a plebe oprimida, só que desta vez ambientado na Inglaterra dos séculos 17 e 18. - - declarou.
Racilva
--- Quem diria. Ele tem e eu não. Se me perguntasse, então saberia.
Muniz
--- É um livro ambicioso por que gosta de ler. O “Homem que Ri” é como passará a ser chamado o personagem Gwynplaine. Por ser filho de um inimigo político do rei, ele fora entregue ainda pequeno aos comprachicos, uma trupe de facínoras que faziam do crime uma indústria, ao deformar crianças para explorá-las em atrações de bizarrices. Abandonado depois pelos próprios comprachicos, Gwynplaine se vê vagando sozinho pelo mundo até deparar-se com Dea, uma criança órfã e cega. - - explicou.
Racilva
--- Tá bom. Já basta. Se não a mocinha não vai ler. Interessante. - - e folheou o tomo como se quisesse também ter um daqueles. Pegou de volta e o entregou a Kátia.
Kátia
--- E o seu? - - quis saber.
Racilva
--- Estou no início. Meu pai tem me ajudado. Enfim, eu vou levando. Veja! - - disse.
Kátia
--- Não. Não. Eu prefiro ler depois. – sorriu amplo
Muniz
--- Esse “romance” é um apêndice do que foi o Opus Dei. No seu início, houve a guerra. E a Espanha mergulhou em profunda depressão. Lutas entre cristãos e comunistas. Brutais perseguições religiosas. Igrejas foram incendiadas. Clérigos, chacinados. Pessoas pisavam sem querer em cadáveres no meio da rua. Quatro mil padres foram assassinados. Dezenas de Bispos, centenas de Freiras às vezes alinhadas em um paredão e fuziladas pelos Comunistas. Um horror macabro. Forçado a clandestinidade, José Maria viveu como refugiado em meio ao terror e sempre em fuga. Ele se abrigou em sótão e fez se passar por paciente em um asilo por cinco meses. Em março de 1939 os nacionalistas emergiram vitoriosos. - - explicou
Kátia
--- Nossa!!! Que horror!!! - - empalideceu a jovem moça.
Racilva
--- Para você vê. Era um estado de guerra sem fronteiras. Meu pai é quem diz! - - alertou Racilva
Kátia
--- E ninguém sabia de nada? - - assustada.
Muniz
--- Franco assumiu o poder como Ditador e governou a Espanha, brutalmente, por 36 anos. As pessoas haviam pago com sangue por sua fidelidade à Igreja. São José Maria e a Opus Dei já foram acusados de apoiar o regime fascista, repressor de Franco. Porém o Opus Dei manteve fora da política. No dia em que a guerra acabou José Maria contemplou as ruinas da Academia DYA. Mas ele nunca olhou para as ruínas causadas contra o Opus Dei. Por fim sem mais nem menos ele morreu aos 73 anos em 1975. – disse o pai de Racilva
Racilva
--- E a história acabou. Isso é o fim! - - falou sem entusiasmo
Kátia
--- Um homem, um padre, uma história de vida! - - falou em murmúrio
Muniz
--- Sim. Uma história de vida. Hoje, no subsolo da capela de Nossa Senhora da Paz, jazem os restos mortais de San Maria Escrivar. A Prelazia do Opus Dei fica em Roma. Porém, em todos os países temos também a presença da organização. –
Kátia
--- O que é uma prelazia? - - indagou
Muniz
--- Prelazia é uma parte da Igreja Católica. O Prelado é a sua cabeça. Sacerdote é um prelado escolhido. A Prelazia pode se dar por diversos motivos. A Prelazia do Opus Dei pode ocorrer de uma realidade eclesial. É um dom de Deus para a Igreja. Isto é a Prelazia. Esse negócio de negação corporal, com espancamento, pode ser feito por algum adepto. Mas, não comum. No tempo antigo era uma disciplina espiritual na Igreja Católica. Hoje é praticada por muita gente, os frades, fora da Igreja e a Opus Dei. Madre Tereza usava um pequeno chicote, como é o caso. Uma espécie de sacrifício corporal. Um modo de partilhar os sacrifícios de Cristo na Cruz.
Kátia
--- Cruzes! Não quero nem levar uma lamborada de minha mãe!! Nossa!! - - declarou a moça, constrangida.
Muniz
--- É penitencia, filha. Penitência. Flagelação. Pode ser jejum, banho frio ou dormir no chão ou sobre tábua sem travesseiro. Os mendigos fazem isso cotidianamente. E não são gente pobres. Eles dormem ao relento, em baixo de um cobertor ou sem cobertor. Eles dormem feito um cão. Dê um passeio à noite pela cidade e verás como dormem os mendigos. São vários. Comem o que lhe dão. Até mesmo na Igreja de Santo Antônio. Passe lá e veja de perto. Vá lá! - - declarou o homem
Kátia
--- Eu nunca ouvi falar nessa questão, aqui em Natal. Aqui mesmo? Coitados!!! - - declarou mortificada
Muniz
--- Pois é, filha. É assim mesmo! Eles nem precisam serem presos. Deitam-se no chão e dormem ali mesmo. No dia seguinte se levantam e procuram alimentos nas latas de lixo. No forno do lixo tem família a comer o que não presta mais para os patrões. Ninguém fala nisso. Mas eles estão lá, dia e noite. E não são nem mendigos. São um povo esquecido. Um pária social.
Kátia
--- Deus meu! - -as lágrimas lhes desceram a face


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