quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O INFERNO - 41 -


- Marina Ruy Barbosa -

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MANHÃ

Na segunda-feira, pela manhã, logo cedo, o Mercado Público da Cidade tinha um movimento de vendas bastante anormal. O mais requisitado era o Café de dona Nora onde as pessoas se serviam e conversavam a miúdo em termos quase sigilosos. Com o temor dos acontecimentos, mesmo o havido no domingo bem perto daquele local, os clientes do Café preferiam não falar abertamente, pois sempre existia alguém de outras plagas, por certo a ouvir tudo o que se falava e por quem, era evidente.  Dona Macrina, a mulher da tapioca chegara logo cedo com a sua banca onde havia bejus, pé-de-moleque, milho assado e cozido, pamonha – uma delícia – entre tantos outros comestíveis no qual havia igualmente a tapioca de côco ou sem côco, molhada e seca, como era costume da venda. Alguém passava e adquiria aquilo a lhe dar maior prazer e mesmo levar para a sua humilde casa onde punha na mesa para a alegria de todos. No restante do Mercado o movimento era fraco. Os talhadores de carne verde nada podiam fazer pela a ausência do produto. No domingo nenhum carro chegara para abastecer as bancas de carne. Havia apenas uns langanhos de carne seca. E muito pouca, além disso. Na pedra do peixe nada havia para vender ou comprar. Estava tudo de mal com as relíquias da refeição do dia.
Em outro caso, Zé Sapateiro foi um deles. Na segunda, ele chegou bem cedo a sua oficina. Após tomar o seu café na banca de dona Nora, Zé se voltou para o seu lugar de sempre onde alí batia sola e conversava igualmente com algum freguês sobre questões ocorridas nos recentes dias. O mesmo acontecia com “Barateiro”, um homem em um quiosque a vender de tudo um pouco, como mel de engenho entre algo mais complexo. E estava também o homem do leite – seu Sandoval – o qual nada havia recebido àquela hora da manhã ainda cedo. Quem procurava o leite fresco do dia, recebia apenas a negativa com o homem a tanger com a sua toalha as moscas malditas. Do lado de fora do Mercado, as mulheres vendedoras de artigos da roça ou mesmo de rosas dália. Essas mulheres tinham um pouco de tudo, pois cuidavam de suas flores nos seus próprios quintais.  Outros vendedores faziam negócio com suas simples mercadorias, como caju, mangaba, manga rosa e outras delícias para um refinar sofisticado. Aquele era um lugar de toda gente, afinal.
Nenhum tumulto era ouvido no Mercado da Cidade, a não ser quando os militares passavam tão estranhos e agourentos. Eram uns poucos, mas eram detestáveis por sua posição majestosa e fugaz. No entanto eram uns pigmeus, graças a Deus. Em sua passagem deixava um asco o qual se podia sentir a longa distância. Mesmo assim tinha alguém desaforado a atormentar a paz dos militares. Alguém a dizer algo e desaparecer:
Alguém:
--- Corno! Filho de uma puta! Serviçal! – dizia aos berros enquanto fugia.
Qual nada. Os militares batiam em perseguição ao desordeiro malcriado tentando pegar o sem vergonha a qualquer preço. Era difícil esse acossamento, pois entre meio de tanta palha de banana o forasteiro escapava de vez para ninguém notar nunca mais. Os militares, atônitos, findavam sem nada poder fazer de certo. Então, voltavam, cheios de palhas de bananeiras entre outros coisas ruins, com acerto.
Nessa mesma manhã, estava em seu escritório o moço Sócrates. Em sua companhia a secretária Norma Balistiero, senhorita dos seus 20 anos de idade ou coisa assim. Entre uma coisa e outra o rapaz indagou de Norma se agradou o que a moça pode ver na sexta-feira passada.
Norma:
--- Uma tragédia! Nunca vi coisa igual! Elementos sendo trucidados a todo custo! – declarou fazendo uma aversão de horror.
Sócrates:
--- Aquilo é guerrilha. Quando ninguém acha que vai suceder, o fato acontece. Os guerrilheiros aparecem e desaparecem em um instante.
Norma:
--- Horroroso! Como se faz aquilo?! – foi a interrogação acidental.
O rapaz sorriu por uns instantes e logo depois voltou a falar com precisão:
Sócrates:
--- Norma, minha afetuosa menina. É possível que você tenha ouvido falar em Cuba ou revolução da China. Pois bem. O ocorrido na sexta-feira, em Natal, foi um arremedo do que se fez ou se faz em outras nações do extremo oriente. Não mais em Cuba, é verdade. Cuba é o passado. Mesmo assim, eu cito como exemplo. A exemplo desses países, os guerrilheiros de Natal e de outros Estados do País tem apenas uma preocupação: atirar para matar. Eles agem como agiam os temerosos homens do cangaço no tempo de Lampião. Atiravam para matar. E só. Hoje, aqui, acontece o mesmo. Pei bum. E fogem sem deixar rastro. Esse é um movimento de extrema esquerda. Não se sabe de nomes ou de onde vêm. Apenas chegam e agem. – declarou.
Norma:
--- Que horror! E esses homens por qual motivo? – indagou perplexa.
Sócrates:
--- Bem. Sempre há um motivo. Aqui, na questão, é a vez do Cemitério do Alecrim. Os guerrilheiros agem em defesa dos mortos ou da terra. Diz-se os mortos. Porém, pensando bem é a questão da terra. Quem morreu já foi. Mas a terra, não. A questão é que a Prefeitura quis se desfazer de cemitério encravado na parte nobre da cidade. E essa parte está encravada no cemitério. Em meio a surdina, a Prefeitura buscou entendimento com uma firma e preparou o papel tendo feito, mesmo sem se saber, a comunhão com essa empresa e deflagrou a sorte. Veja se entende. – confirmou.
Norma:
--- Não entendo a razão e o porquê. Como? – estranhou.
Sócrates:
--- Simples. Muito simples. A Prefeitura fez de conta não saber e então deu a ordem para a empresa retirar tudo o que existe no Cemitério e, depois, botar tudo no forno do lixo. – sorriu.
Norma:
--- Que horror! No lixo? É uma safadeza! – declarou com ira.
Sócrates:
--- Pode ser. Até pode ser. Mas no local não tem quem reclame coisa alguma. Tem, sim, os corpos ou os esqueletos das vítimas. Mas, nesse caso, a Prefeitura faz a doação –bem entendido: não é propriamente uma doação, uma vez que a família recebe e paga por aquele frasco ou vaso de alabastro. Então os restos do parente ficam com os familiares. Alguns, já mortos há dezenas de anos nem mais parentes têm. E leva-se para o crematório ou apenas se diz não haver mais nada no local ou no tumulo, sarcófago, mausoléu ou coisa a mais. – sorriu.
Norma:
--- Eu não concordo com essa infâmia! Tem que se tomar uma posição a respeito! – declarou com severidade.
Sócrates:
--- A senhorita tem algum familiar sepultado no Cemitério? – indagou de forma suave.
Norma:
--- Eu não. Imagine. E se não tenho, não volto atrás. O negócio é protestar! É isso o que se faz. – reclamou com ênfase.
Sócrates:
--- Escute! O Brasil já enfrentou guerras severas nesse sentido. Período de perseguição, violência e censura. O Governo brasileiro foi de um terror descomunal. O Exército enfrentou guerra rural por grupos armados. E no que deu? Em nada! Ainda hoje se procura corpos dos guerrilheiros perdidos na mata densa. – reclamou
Norma:
--- Já ouvi falar em tudo isso! Pode não ter dado em nada. Mas o brasileiro se pôs da defesa das suas ideias. Mortos ou não, eles defenderam e ainda defendem o que é justo! – arrematou com ênfase.
Sócrates:
--- De que vale morrer por nada? Se eu morrer agora, não terei mais valor nenhum. Fica o meu corpo no chão. Quem morre, acaba. É isso! – comentou com severidade.
Norma:
--- Até Jesus? – perguntou com sagacidade.
Sócrates:
--- Ouça! Jesus nunca existiu. Isso é conversa dos tolos. Houve um homem como outros no seu tempo. Mas não devemos acreditar em um homem que se sacrificou por nós. – comentou.
Norma:
--- O senhor acredita que esse Jesus que em falo se casou com Maria Madalena? Eu tenho provas! – foi ao fundo na sua decisão 



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